domingo, 6 de novembro de 2011

É Natal, é Natal! - homenagem ao João



Ok, não é Natal, mas isso não significa que eu não queira que seja.
O meu espírito natalício, admito, é a coisa mais consumista que pode haver. Gosto de ir à rua e ver um montão de luzes, famílias com aparência feliz dentro dos seus casacos enormes, pessoas com sacos nas mãos e risos de crianças. Acho que tenho vindo a ser demasiado influenciada pelos anúncios, pelo facto de faltar um mês para o natal e já tudo estar enfeitado como se fosse já amanhã, apelando ao nosso sentido consumista.

Essa é uma das pontas que tem que ser limada na minha personalidade, porque sinto que eu estou a ir contra mim mesma. Mas já é um passo reconhecer o facto, porque nem sempre fui assim. Quando era criança (e até bastante tarde) essas preocupações sociais (bem, qualquer preocupação com os outros) não me vinham à cabeça. E não me sentia culpada por isso, talvez por nunca ter tido bem a noção do que era viver na pobreza e a vergonha que isso acarreta.
O meu primeiro contacto com ela foi tarde.
Estávamos no Verão de 2001, era o meu aniversário, tinha acabado a escola há uns dias e ia de férias para outro país. Como de costume, tive uma festa de aniversário gigante, com tudo o que uma criança pode querer. Como sempre, também, convidei a minha turma toda para os meus anos. Fazia onze e tinha acabado de passar o meu primeiro ano numa escola pública, que de resto, tinha adorado.

Havia um rapaz na minha turma que vinha de famílias pobres e já estava no quinto ano há uns dois ou três anos. Julgo que tinha treze pela altura do meu aniversário. Como convidei a turma toda, também o convidei a ele. Mas quando lhe entreguei o convite, ele disse-me que não sabia se podia ir. Percebi que me dizia aquilo porque não me podia comprar uma prenda e então insisti, com o pretexto de que não ligava nada a prendas (o que era pura mentira, admito) e continuei com a feliz distribuição dos convites.

Chegou o dia do meu aniversário e a minha melhor amiga chegou mais cedo (como todos os anos, até hoje! eheh!) para nos ajudar a decorar a casa. Vieram palhaços, pula-pula, doces caseiros, muitos sacos de comida e uma abundância desmesurada, à qual eu não me sentia minimamente culpada. Achava que era assim com todos os meninos. Chegou a hora marcada e começaram a entrar pessoas, cada uma com a sua prenda, que eu abria com um sorriso, para depois pôr para o lado e abrir a próxima.

A determinada altura, o João (assim se chama ele) bateu à porta e eu fui abrir. Desejou-me parabéns e tirou do bolso um envelope branco, amachucado, nitidamente reutilizado e entregou-me. Lembro-me de ter olhado para as sapatilhas dele e de elas terem buracos nos dedos. Interroguei-me o que estaria ali dentro e abri à sua frente.

Eram cinco euros, acompanhados de uma voz que disse 'desculpa não te poder dar mais', seguida de uma corrida por parte dele até ao pula-pula, para se divertir e brincar com os outros miúdos. Fiquei mais algum tempo ali parada, a olhar para o dinheiro e julgo que nunca o gastei. Se o fiz, foi muitos anos mais tarde e sem querer, porque lembro-me de guardar aquela nota religiosamente num cofrezinho.

A partir desse momento, desse dia, a minha preocupação social foi crescendo, crescendo, e o meu sentimento de culpa em relação aos gastos de Natal, aumentando. Para os aniversários das minhas amigas mais próximas, passei a fazer coisas à mão ou a oferecer coisinhas com significado. Os meus aniversários continuaram a ser grandes, mas a minha preocupação com as prendas decresceu muitíssimo e agora, sempre que me oferecem algo, eu espanto-me no sentido de prestar atenção ao que me estão a dar, e agradeço do fundo do coração, porque a pessoa investiu tempo e dinheiro naquilo, de propósito para mim.
Posso afirmar com toda a certeza que esse aniversário mudou a minha vida e que estou eternamente agradecida ao João, embora nunca mais o tenha visto. Tenho a certeza que ele nem faz ideia do quão significou para mim, nem eu quero cobrar-lhe isso.
O meu desejo é que toda a gente tenha um João na sua vida e que ele apareça mais cedo do que me apareceu a mim.

Desenganem-se se acham que aqueles 5€ mudaram a minha vida. O que mudou foi o facto de ele ter aparecido, embora coberto de vergonha, e ter deixado grande parte de si em mim.

Obrigada João, porque obrigada fui eu a cair na realidade.
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