quinta-feira, 1 de março de 2012

Há mar e mar. Há ir e afogar.

Fotografia minha


Quando ela se deitava no chão, sonhava. Sonhava que era muito, que era imensa, que cada vez que estendia os braços, podia tocar no outro lado do mundo. Sonhava que ela mesma era um cliché e fazia jus a todas as frases feitas que conhecia de cor ou que tinha apontadas em livrinhos ridículos. Quando chovia, gostava se sair de casa, despir-se e deixar que a nudez tocasse na água, enquanto a alma ascendia sabe-se lá para onde com o vapor que saía do seu corpo. Gostava de deixar que o calor se desprendesse dela e de se tornar fria. O tempo sempre tinha sido um grande obstáculo. Às vezes tinha dúvidas se ele passava, se as horas o definiam, ou de a cada passo que dava, esmagava mais um minuto para ele não acontecer mais. E exactamente vinte e quatro horas depois ele voltava a acontecer. As manhãs eram iguais às noites e às tardes. As insónias eram iguais às manhãs, que eram iguais às noite, que eram iguais às tardes.

Já não tinha ninguém há muito tempo. Saudosa, revivia beijos e abraços, mas o calor há muito que não habitava no seu corpo. Agora, já nada lhe restava a não ser ela, e mesmo assim, nem sabia se se tinha. Quando o corpo tocava na chuva - e a chuva tentava não tocar nele, com medo que a fragilidade se tornasse forte - ela saía de si.

Uma noite, deixou-se ir. Estava tanto frio, quase nevava. Chorava o tempo cinzento, sem cinzas. Assim que ouviu a chuva a bater nas vidraças, abriu um buraco no tecto. Ficou deitada enquanto a água inundava a casa. Ela foi boiando, até se deixar afogar. Agora estava presa dentro de uma placenta com a sua alma, que vagueava pela primeira vez no mesmo espaço que ela.
Ficaram juntas e só na asfixia se encontrou consigo.

Encontraram-na, fizeram cinzas dela. E nunca mais pôde voltar a sentir o frio líquido, que líquido era o tempo, que afinal passava e ela nunca soube. Que líquidas eram as tautologias, as verdades.
Mas nada disto ela soube, que cinzas são sólidas e o resto é líquido.
E o tempo continuou a passar, todo igual, porque é necessário deixar Sísifo feliz.
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