quinta-feira, 8 de março de 2012

A Irene

A Irene é minha colega de turma. Esconde a sua magreza por trás de roupas largas e vintage, que não é aquele moderno, usa botas pretas de pele sintética e o cabelo cortado a direito, ondulado, acima dos ombros. Nunca sorri. Senta-se na segunda fila e toma apontamentos em folhas totalmente brancas e vazias, tão vazias como a sua expressão. A letra é cuidada, pequena, e desenha palavras vagarosamente, ao de leve, no vazio da folha. Há aulas em que não escreve uma única palavra. Limita-se a ouvir e não se percebe se está com atenção ou não. 
Quando as aulas começaram, não me apercebi da sua presença imediatamente, embora ela estivesse sempre atrás de mim. Nunca me falou, nunca me cumprimentou, raramente me dirigiu o olhar.

Ainda no ano de 2011 eu tinha uma agenda com pinturas diferentes em cada semana. A desse ano era de Dalí, a deste, de Klimt. Aproximávamo-nos do Natal e ela, num tom de voz baixo e calmo, diz-me: Laura, posso ver a tua agenda? E eu passei-a para trás. Ontem sucedeu-se o mesmo. Mas desta vez eu sentei-me ao seu lado e prestei atenção à sua expressão. Notei o cuidado que tinha em não ver as minhas notas diárias e de se concentrar em cada pintura, em cada detalhe. Passava a mão pequena por cada página e a sua expressão, outrora vazia, era agora cheia de luz e brilho, como se cada pintura fosse o seu pequeno mundo. Não faço ideia de onde vem, sei que namora mas nunca lhe vi indícios disso mesmo, sei que não a vou ver mais quando o ano acabar e eu voltar para Portugal. Mas sei bem que a sua expressão a olhar para a pintura não me passará despercebida na memória, ainda que este seja só um texto perdido entre muitos outros.
É nesta rapariga que eu não vejo sentimentos. Que eu não vejo doçura na voz, nem raiva, nem intervenções nas aulas. Não sei se lê os textos, se é boa ou má aluna, se passa às disciplinas todas à primeira ou se tem dificuldades de aprendizagem. Não me admirava se um dia fosse directora de uma empresa ou se fosse desempregada. 
A Irene é a primeira pessoa que eu conheço que dá corpo ao adjectivo 'indiferente'. E no entanto, não me passou ao lado.


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