sábado, 18 de junho de 2011

Dia 43 - O meu avô

O meu avô chamava-se Fernando e morreu há alguns anos. Suponho que eu teria dez ou onze anos. Dez, talvez, porque estava no quinto ano. Foi militar, mas pouco soube sobre a sua carreira. Sei que participou no pentatlo militar e que ganhou umas quantas medalhas de ouro, prata e bronze. Sei que apertou a mão ao general Spínola porque há uma fotografia que retrata o momento. Viajou muito, mas nunca levou a minha avó consigo. Ela queria muito viajar, e ele já estava cansado.
Levou a família consigo para onde ia "em missão" (será que é assim que se diz, ou ando a ver demasiada televisão?), sendo que viveu em África - Moçambique, salvo erro. A minha mãe passou aí parte da sua infância, enquanto a minha avó e as amigas faziam croché e conversavam. Foi baleado e fingiu de morto. A minha avó chegou mesmo a achar que ele tinha morrido, até ser descoberto. Não sei nada sobre a guerra, mas por alguma razão, evito o assunto. Parece que tenho um medo enorme e às vezes tenho a sensação de que vou viver uma guerra - embora nem saiba o que isso é.

Pensando bem, eu não conheci o meu avô. Ele estava sempre a meter-se comigo - como toda a gente faz - e eu afinava e não gostava. Lembro-me de uma vez que ele me magoou numa afta enquanto me dava um beijinho e não se apercebeu. A mim doeu-me, mas não o suficiente para fazer a fita que fiz. Afastei-me dele (isto tinha eu uns sete anos) e empurrei-o, chorando que nem uma desalmada. E não aceitei as desculpas dele, nem outro beijinho do outro lado. Isto pode parecer um episódio isolado e sem qualquer significado, mas a verdade é que o tenho encravado e eu própria não me perdoo, erradamente, talvez.

Quero casar com alguém com a doçura e bondade que eu sentia quando estava com o meu avô. Ele lá teria os seus defeitos, mas eu era tão nova e estive tão pouco tempo com ele, que mal me apercebi deles. Gostava muito de um dia voltar a falar com ele, gostava que ele me contasse todas as suas histórias de criança, gostava de saber a sua perspectiva de vida. Mas também não pergunto a ninguém, porque o que os outros me contarem vai passar pela peneira da sua alma e não me vai chegar no estado que eu queria que chegasse - original.

Foi o meu avô que me ensinou a nadar. Ele praticava natação e treinava pessoas para entrarem no exército. Lembro-me bem de montar nos baloiços (que construiu para mim) uma espécie de ferros de musculação, para se exercitar de manhã.
Tenho também a sensação de que ele já não gostava da minha avó e só se manteve com ela por uma qualquer questão que eu não consigo desvendar. Nem quero, de facto. Prefiro, neste caso, a ignorância. Até porque a minha avó, que está viva (e ainda bem!), está feliz e eu quero continuar a vê-la com estes olhos ignorantes do que com uns olhos toldados pelas histórias ou motivos que eu possa inventar.

Entretanto, o meu avô teve cancro no cérebro. Não me lembro de me terem dito, mas lembro-me de ir ao hospital vê-lo, uma vez. Tinha acabado de ser operado à cabeça (operação que veio a piorar todo o seu estado, pelo que me quis parecer) e cegou. Mais tarde, há cerca de um ano ou dois, a minha mãe disse-me que ele tinha chorado muito porque só tinha pena de não poder ver mais a sua neta. Eu também tenho pena de não poder ver mais o meu avô, mesmo que pense nele todos os dias. Não passa um dia sem que eu pense nele e isto é estranho. Às vezes penso nele até adormecer, ou quando vou ao ginásio, ou até mesmo a meio de um exame. Penso no que diria, no que faria. É como que o meu amigo imaginário. A minha sorte é que ele já existiu mesmo.

Não sei quando faz anos que morre, mas sei que fazia anos no dia 16 de Abril. E nesse dia, todos os anos, lhe escrevo uma carta. Tenho várias espalhadas, algumas perdidas, outras que nunca mais vi. Este ano não escrevi, mas descobri uma fotografia onde estamos os dois e mandei ampliá-la. No dia dos seus anos, pendurei-a no meu quarto, na parede. É a única que ainda não caiu.

O meu avô seria uma das quatro pessoas a quem eu confiaria a minha vida.

Não fui ao funeral do meu avô. Lembro-me que quando morreu, eu tinha teste de história no dia a seguir. A minha mãe disse-me nessa noite, depois de já termos acabado o estudo. Chorei pouco, e acho que chorei porque me senti obrigada.

O meu avô ensinou-me a andar de bicicleta, numa bicicleta verde, primeiro com rodinhas, e depois sem elas.
Tenho saudades da pessoa que acho que o meu avô foi.
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