quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Galkiewicz

Façam o favor de anotar a seguinte dissertação como trabalho de casa: "Por que é que a poesia do grande poeta Juliusz Slowacki está impregnada de uma beleza imortal que a todos encanta?"
Neste ponto da prelecção, um dos alunos levantou-se e gemeu:
- Pois a mim, ela não encanta! Não me interessa! Não consigo ler mais que duas estrofes sem ficar farto! Meu Deus, socorro! Como pode ele encantar-me se não me encanta?
Dito isto, voltou a sentar-se com os olhos arregalados e fixos no chão, como se olhasse o abismo. A ingénua confissão aturdiu o professor.
- Silêncio, pelo amor de Deus! - exclamou. - Vou dar uma nega a Galkiewicz. Galkiewicz, você quer acabar comigo? Talvez você não tenha consciência do que está a fazer.
GALKIEWICZ
Mas não entendo! Não consigo compreender como pode ele encantar-me, se não me encanta!
O PROFESSOR
Como é que ele não pode encantá-lo se lhe expliquei, Galkiewicz, centenas de vezes, que ele o encanta?
GALKIEWICZ
Pois, mesmo assim, ele não me encanta.
O PROFESSOR
Isso, Galkiewicz, é um problema pessoal seu. Pelos vistos Galkiewicz não é inteligente. Os outros ficam encantados.
GALKIEWICZ
Dou-lhe a minha palavra de honra que ele não encanta a quem quer que seja. Como poderia encantar alguém se ninguém o lê, excepto nós, que estamos em idade escolar e o lemos por obrigação...
O PROFESSOR
Fale mais baixo, pelo amor de Deus! É que somos poucos os homens realmente cultos e que estão à altura...
GALKIEWICZ
Pois nem os cultos o lêem. Ninguém. Ninguém. Absolutamente ninguém.
O PROFESSOR
Galkiewicz, eu tenho mulher e um filho! Pelo menos Galkiewicz, tenha dó da criança! Saiba, Galkiewicz, que é indiscutível que a grande poesia nos deve encantar, e como Juliusz Slowacki foi um grande poeta... Pode ser até que Slowacki não o comova, mas não posso acreditar se me disser que a sua alma não se emociona com as obras de Mickiewicz, Byron, Pushkin, Shelley, Goethe...
GALKIEWICZ
Não comovem ninguém! Ninguém está interessado no que eles têm a dizer. Ninguém consegue ler duas ou três estrofes sem ficar farto. Meu Deus! Eu não consigo...
O PROFESSOR
Galkiewicz, isso é inadmissível. A grande poesia, sendo grandiosa e sendo poesia, não pode deixar de nos emocionar - portanto, emociona-nos.
GALKIEWICZ
Pois a mim não emociona - nem emociona aos demais! Ai, meu Deus!
A cara do professor cobriu-se de grossas gotas de suor. Tirou da carteira a fotografia da sua mulher e do seu filho e tentou, com ela, sensibilizar Galkiewicz; mas este continuava a repetir o estribilho: "Não consigo, não consigo." E esse incisivo "não consigo" multiplicava-se, crescia e contagiava, a ponto de ecoarem sussurros: "Nós também não conseguimos", e um sentimento geral de impotência começou a espalhar-se pela sala. O professor viu-se num terrível impasse.



Witold Gombrowicz, "Ferdydurke". Tradução de Maja Marek e Júlio do Carmo Gomes.



criticadarazaointerior@hotmail.com para comentar.
Todos os comentários obterão resposta no blog.
Próximo post: Mimesis e Catarsis