sábado, 1 de outubro de 2011

Os Açores

Eu não nasci nos Açores, mas sim em Lagos, em 1992. No entanto, é como se tivesse nascido. Na verdade, só por acaso é que o meu local de nascimento não foi lá.
Não tenho nenhum familiar nos Açores e no entanto a maioria das pessoas que conheço são Açorianas. Muitos comentários e críticas tenho feito à minha ilha. Acerca das gentes, acerca dos lugares e acerca dos costumes. Mas na verdade, não sou nenhuma historiadora do local.
Lembro-me de quando lá vivia, querer sair "daquela ilha", querer ir para o Continente, querer conhecer o mundo e todas essas ânsias que qualquer adolescente tem. Ia no autocarro fedorento que liga Ponta Delgada à Ribeira Grande (passando por Rabo de Peixe) a tentar ignorar o desconforto dos bancos duros e escorregadios, o facto de a senhora ao meu lado cheirar insuportavelmente mal e de as janelas estarem tão sujas que o máximo que se conseguia ver lá para fora era uma imagem distorcida e bolorenta da realidade, e pensar que daquela altura a um ano, a seis meses, a três meses, já lá não estaria. Estaria na civilização, estaria "na minha terra". O que se torna curioso é o facto de quando começava um ano novo na escola, eu dizer sempre que era "do continente". Como se ser do Continente me distinguisse de alguém na turma. Como se ser do Continente me desse um status que eu não ousava perder. E, no entanto, muitas vezes fui mais Açoriana que alguns colegas meus.
Às vezes dou por mim num qualquer transporte público, limpo, cheiroso, com pessoas bem vestidas e sérias, que tem uma voz electrónica que nos diz qual é a próxima paragem, a desejar profundamente estar a percorrer a "estrada velha" para a Ribeira Grande. E fecho os olhos, deixando passar por mim aquela imagem desfocada das montanhas que passavam mais depressa do que, no meu íntimo, eu desejava que passassem.
Os meus grandes amigos, fi-los em São Miguel. Os Micaelenses têm um sotaque que me fascina (e cuja imitação que eu tento constantemente fazer fica muito aquém do que seria de esperar), têm expressões que justificam perfeitamente o que estamos a dizer/fazer e muito pouca gente sabe disso. Quando vão turistas a São Miguel, só me apetece rir-lhes na cara e dizer-lhes que não chega estar uma semana na ilha. Um mês não chega para ver o arquipélago todo. Porque ver São Miguel não é ver Lisboa, nem é ver Madrid. Ver São Miguel é ir às Furnas e parar pelo menos uma hora para que cada bocadinho do nosso corpo veja efectivamente. Ver São Miguel é ir à praia e cheirar o mar, que tem um cheiro diferente e mais adocicado do que o mar do Continente. Ver São Miguel é deixar que um bocadinho de basalto fique preso no nosso sapato enquanto visitamos uma qualquer paisagem.

As memórias que tenho de São Miguel são todas as memórias que tenho. Na verdade, devem restar-me uma ou duas esquecidas de uns tempos que vivi no Continente. Quando penso em São Miguel, penso em silêncio. Penso em calma. Por vezes, vem-me o cheiro da minha casa ou da casa da Filipa à memória. Outras, dou por mim a descer o Palheiro até às Poças. Quase que saboreio o milho no Verão. Sinto nas mãos a humidade enquanto passo uma página de um livro.
São Miguel é como África: deixa-nos um bichinho que é impossível esquecer. E esse bichinho não se retrata num postal ou numa fotografia. Às vezes digo "escuta, esta é uma fotografia dos Açores. Mas o que estás a ver aqui não é real. Tens que ir lá!" e a pessoa olha para mim e sorri, sem fazer a mínima ideia do que falo.

Acho que os Micaelenses são dotados de uma sensibilidade imensa. São sensíveis à saudade, à distância, ao ir e ao regressar. Para os Continentais, a gente Açoriana não passa de uns vídeos engraçados no YouTube onde uns "rabpxinhs" cantam músicas sem sentido. Mas foi nos Açores que eu aprendi que não há pessoas más. Foi nos Açores que eu vi uma real pessoa pobre. Foi nos Açores que eu vi tantos Açorianos que não queriam ser Açorianos. Foi nos Açores que eu vi quem não os soubesse apreciar.

Há uma pergunta recorrente: "Não te sentes claustrofóbica em São Miguel? Estão tão longe de tudo, estão cercados de mar, estão tão presos...". Normalmente respondo "São Miguel é libertador. Podemos olhar em frente e não ter a visão a ser impedida por um carro que passa ou por um prédio. Podemos abrir os braços no meio da Avenida sem tocar em dez pessoas ao mesmo tempo. E nunca vi um Micaelense com falta de qualquer coisa que haja no Continente." e respondem: "mas e a cultura? há tão pouca cultura em São Miguel..." e eu digo: "Em São Miguel há internet. E a maioria dos Lisboetas não usufrui nem de metade da cultura que lhes é oferecida. Ser Micaelense é ser livre sem nos apercebermos". E as pessoas não acreditam...até chegarem a São Miguel.

Eu nasci nos Açores em 1996.

(Filipa, Sofia, Pilão, Ronaldo, Ana Carolina, Ana Faustino, Nádia, Fraga, Cristina, Sara, Faria, Catarina, Jorgim e todos os outros que faltam, mas que estão... sou vossa.)
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