segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O livro proibido - A Lua de Joana

Olhares.com


À medida que fui crescendo, fui acompanhando esse crescimento com um monte de livros. A partir dos 10 anos, tornei-me compulsiva e agora é raro o dia em que não leio alguma parte de algum livro que não seja de estudo. Nem que seja uma página, acabo sempre por dar uma vista de olhos. Não faz mal que seja de manhã antes de ir para a faculdade, à tarde ou, mais frequentemente, antes de dormir. Muitas vezes, em pausa de estudo também. Os brinquedos dos Natais e dos aniversários foram substituídos por livros gradualmente e se a pessoa não me conhecer bem e me quiser oferecer uma prenda, um livro é o ideal porque de certeza que vou gostar.

Numa ocasião, por um Natal, tinha eu uns dez para onze anos, a minha prima Mami ofereceu-me a Lua de Joana. Foi-me imediatamente confiscado por o meu pai achar que eu não tinha idade para ler, que era demasiado pesado e eu ia ficar traumatizada. Quando perguntei à minha mãe, como ela não queria desmentir o meu pai, guardou o livro e disse-me que daí a uns dois anos já o podia ler. Escusado será dizer que a minha cabeça não mais deixou de ter curiosidade. Se nunca ninguém me tinha confiscado livros, por que raio aquele eu não podia ler? As semanas foram passando e eu decidi que ia arquitectar uma estratégia qualquer para o ler - afinal, se estava à venda, não podia ser assim tão terrível, pensava eu que ainda não tinha conhecimento de Margarida Pinto Coelho ou José Rodrigues dos Santos (Laura inocente, que pensava que só se vendiam coisas de qualidade...). Até que me surgiu a ideia ideal: ir à biblioteca e requisitá-lo. 

A cidade onde vivia era pequenina e eu nunca tinha ido à biblioteca pública. Na altura, ficava muito próxima do serviço da minha mãe, mas como eu sabia que ela nunca lá ia, não havia problema. Num dia em que não tinha aulas à tarde, lá vai a Laura com a sua mochila, muito bem posta, à biblioteca requisitar o seu primeiro livro. Nesse dia, passaram-me milhões de pensamentos pela cabeça, milhões de formas de ser impedida de requisitar o livro, mas nunca o que se sucedeu. 

Assim que lá cheguei, pedi o livro à bibliotecária e ela deu-mo. Disse-lhe que queria requisitar e ela deu-me uma ficha para eu fazer o cartão - na altura, ainda se preenchiam à mão. No final entreguei e ela disse-me que estava incompleta: como era menor de idade, necessitava da assinatura do encarregado de educação. Fiquei para morrer. Como é que raio ia eu explicar à minha mãe que queria a assinatura dela para uma ficha de biblioteca que me dava acesso ao livro proibido? Levei a ficha para casa e pensei. 

Acabei por ir à biblioteca no dia seguinte, dizendo que a minha mãe não estava no país e que precisava muito daquele livro para a escola, para essa semana. A senhora lá me fez cara feia, exigiu a assinatura assim que a minha mãe chegasse e emprestou-me o livro com a condição de eu o devolver daí a duas semanas. Nesse dia fui toda feliz para casa. À noite, até me fui deitar mais cedo, para estranheza daqueles que viviam comigo. Comecei a ler e devorei-o em três dias. Reli-o e até hoje não me lembro da história, só sei que são cartas de uma amiga para outra que já morreu. Quando acabei a segunda leitura, pensei cá para mim por que raio tinha sido aquele livro impedido, se não tinha nada de mal. Mas enfim, lá fui muito certinha duas semanas depois à biblioteca devolvê-lo, dizendo que me tinha esquecido da ficha assinada em casa. Eis se não quando, aparecida do nada, entra a minha mãe na biblioteca. Olhei para ela e parecia que tudo tinha parado, não podia ter escolhido outro dia para lá ir, nem outra hora, se não aquela em que eu estava a devolver 'o' livro. Entre 'olá mãe, beijinho beijinho', 'olá Laura, mas então que vieste aqui fazer, beijinho beijinho' a bibliotecária arrumou o livro e disse: agora que a tua mãe está aqui, é melhor fazermos outra ficha, para não teres mais problemas em requisitar livros. Até fiquei branca. Mas bem, voltei a preencher, a minha mãe assinou e a senhora deu-me o cartão.
Não sei como, mas a minha mãe não me perguntou o que é que tinha ido requisitar e eu nunca toquei no assunto. 

Seis ou sete anos mais tarde, estava a desencaixotar uns livros para arrumar na estante do meu quarto, quando vejo no fundo do caixote A Lua de Joana. Sorri para o livro e hoje olha para mim da estante dos quartos por onde vou passando. No ano passado, esteve em Lisboa. Este ano, em Madrid. 'Um beijinho da Mami' é o que diz, escrito pela minha prima. 
Escrito por mim, abaixo, está 'o livro proibido'.

'Mãe, lembras-te da história à volta deste livro?'
'Vagamente, lembro-me que não to deixámos ler.'
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