quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Os filósofos estão destinados a ser taxistas

'Popular? Nixon era popular. Uma epidemia de tifo é popular.
Quantidade não significa qualidade.'
Annie Hall - Woody Allen
(just my favorite director)


Antes de começar este post, tenho que vos desejar um feliz dia da Filosofia. E desenganem-se se é um desejo vão, sem fundamento, só porque alguém se lembrou que 17 de Novembro era um bom dia para nos dizermos mais ou menos intelectuais. O meu desejo de bom dia da Filosofia vai muito além de um comum desejo de feliz Natal ou aniversário. É um desejo de que o vosso pensamento se revolucione e que se deixem levar por histórias de filósofos e de filosofias (engraçado, a minha primeira pergunta do meu primeiro teste de Filosofia foi sobre a diferença entre Filosofia e filosofia. Mais tarde vim a descobrir que afinal não era nada como tinha estudado e que cada filósofo tinha a sua definição para a coisa), por pensamentos que pensavam ser só vossos e que afinal foram resolvidos, bem ou mal, séculos antes... Não é tão presunçoso quanto parece, na verdade. Tenho a noção que dizer que se estuda Filosofia dá um certo status - mas não se deixem enganar. Estudar Filosofia às vezes é só uma desculpa para se dizer aquilo que se pensa sem se ser criticado. Se eu disser uma barbaridade qualquer, as pessoas até me vão ouvir, acabar por sorrir e dizer 'ah, estudou Filosofia...' como que a desculpar. Por outro lado, se for um estudante de Química a dizer o mesmo, talvez já olhem e ouçam de outra forma. Por isso é que o meu desejo é que as vossas mentes se abram e que acreditem que podem fazer a diferença, porque têm a Filosofia dentro de vós.

Enquanto estava a escrever esta nota introdutória, lembrei-me de quando estudava ciências no ensino secundário. Escolhi ciências quando acabei o 9º ano porque pus na cabeça que queria ser médica legista. Com todo aquele entusiasmo dos horários, toda aquela agitação de comprar material novo, finalmente chegaram os livros. Os livros do ensino secundário, do 10º ano... como estava crescida! Comecei a folhear o de Biologia, que adorava. O de Português, li logo as primeiras páginas, com sede de começar as aulas. Por acaso, não toquei no de Filosofia. 

Chegou segunda-feira e a minha mãe, como forma de me incentivar a gostar de uma disciplina nova, chamou-me nessa noite de segunda, com o livro antes da primeira aula de Filosofia, que era no dia seguinte, e sentou-se comigo à mesa. Era uma mesa branca, envernizada, com cadeiras brancas a condizer, de madeira. Afastou as rendas que a minha avó tinha feito, que estavam por baixo de uma jarra com hortênsias e abriu o livro ao meu lado. Ele começava mais ou menos assim: 'Quer gostes de jogar futebol, quer gostes de estudar, quer gostes de fazer 'x', 'y' ou 'z', estás a ler este livro. No entanto, não és obrigado a fazê-lo'. Aí, a minha mãe parou a leitura em voz alta e disse 'Estás a ver, Laura, este livro está escrito de forma a que todas as pessoas gostem de o ler, porque define grupos onde quem quer que esteja a ler, se vai inserir'. E aquilo não mais me saiu da cabeça. Nessa noite, pensei que gostava tanto de escrever assim, gostava tanto de escrever coisas disfarçadas para que as pessoas pudessem ler e compreender o que eu escrevia sem se sentirem maçadas com a leitura. E adormeci.

Da primeira aula de Filosofia mal me lembro, mas as outras enchiam-me de esperança. Recordo-me do professor, de cabelos compridos, encaracolados, loiros. De ele falar alto e com palavras que eu não percebia bem, mas que no meu íntimo desejava perceber. Lembro-me que gostei da aula e que foi a única disciplina a qual nunca atrasei o estudo. Até porque estava sempre a ser bombardeada com páginas de internet por parte da minha mãe que, diga-se de passagem, eram bastante bem escolhidas. Às vezes, trazia-me impressos artigos de um ou outro escritor mais difícil e sentava-se comigo a lê-los e a interpretá-los de uma forma descontraída, sempre sem qualquer compromisso. Foi a única disciplina, também, que não começou por uma obsessão por boas notas mas sim por puro prazer em ler.

Numa ocasião, a meio do primeiro período, antes do Natal, falei com o meu professor de Filosofia e perguntei-lhe o que é que era necessário para fazer um curso daqueles. Acho que não me ligou muito, respondeu que na altura dele era preciso exame de Filosofia mas que agora só bastava Português para entrar. Mas para eu não me preocupar muito com isso, era melhor que tirasse um curso no qual me sentisse mais segura ou então tirar primeiro Medicina como estava a pensar e, depois, Filosofia se ainda gostasse. E eu encolhi os ombros e tentei esquecer o assunto - afinal, pensava eu, ele tinha razão.

Nessa tarde, estava no carro com a minha mãe (que é a grande interveniente na história, como se vê) e disse que estava a gostar mais de Filosofia do que o que estava à espera. E vira-se ela assim 'Então tira Filosofia!', como se fosse a coisa mais natural do mundo. Fiquei surpresa e uns dias depois, tive a certeza que era aquilo. Num qualquer intervalo entre aulas, vi o meu professor a começar a subir as escadas em direcção à sala dos professores. A escada era de lava, com o corrimão azul e estava muita gente a subir e a descer enquanto ele tentava passar pelo meio das pessoas, num passo mais ou menos apressado, com ar carrancudo. Corri pelo corredor e toquei-lhe no braço enquanto dizia 'professor, tenho uma coisa para lhe dizer!'. Virou a cabeça para a esquerda, onde eu estava e reparei que tinha vestidas umas calças pretas e uns sapatos castanhos pontiagudos. Lembro-me de ter pensado que quando acabasse o curso, devesse comprar uns sapatos pontiagudos, 'de filósofo', para mim - já que aquela era a única e primeira referência que eu tinha. Disse 'o que é, Laura?' e eu respondi 'Professor, já decidi que vou tirar curso de Filosofia no Ensino Superior'. Nesse momento, não houve mais cara carrancuda para ninguém, nem tentativas de me demover nem nada que se parecesse. Só vi um sorriso enorme, o comum tique de pôr o cabelo para trás da orelha e as palavras 'Fico muito contente por ti'. E cada um foi para seu lado.

Nessa altura, também andava na explicação de Matemática. Numa noite de explicação, decidi dizer à professora que ia para Filosofia.
'Oh Laura, que disparate. Se fores para Filosofia, vais acabar por ser taxista!'

Agora penso que naquele momento, começou a minha viagem.
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