sábado, 19 de novembro de 2011

Um professor também chora - por uma aluna que caiu em si

Alvy: Sun is bad for you. Everything our parents said was good is bad.
Sun, milk, red meat...college.

Annie Hall


Às vezes dou por mim a pensar, durante as aulas, quão difícil deve ser para o professor estar ali a esforçar-se para aguentar uma plateia de alunos em que, pelo menos um, está distraído a pensar noutras coisas (i.e. eu, a pensar nisto). Quero dizer, se eu não dormi bem naquela noite, se estou mal-disposta, se não me apetece escrever ou se tenho uma preocupação maior, posso simplesmente abstrair-me da aula e regressar quando estiver melhor, sem que isso interfira grandemente com o meu desempenho ou a minha nota final, principalmente se essa distracção não for norma. Por outro lado, da parte do professor, não se passa bem assim. Ele pode muito bem ter passado no dia anterior por todas as situações mencionadas mas isso não pode atrapalhar o seu trabalho, não pode atrapalhar o seu ensino, porque está ali com uma missão: a de ensinar. 
Sei que é uma má comparação e que até pode ser ofensiva, mas por favor, não a levem como tal, porque creio que é a que expressa melhor o que eu estou a querer dizer: é como um palhaço que tem que estar sempre a sorrir mesmo que um monte de problemas se estejam a passar. É claro que os alunos têm o seu papel. Devemos preparar as aulas no dia anterior, ter a matéria em dia e tudo mais. Mas se não tivermos ou se nos atrasarmos uma, duas ou três semanas, embora depois o trabalho seja a dobrar, isso não têm uma influência assim tão directa nas notas - embora tenha, mas não tanta como no salário dos professores se estes faltarem. 

Enquanto pensava sobre isto, apercebi-me que tinha um trabalho para apresentar na semana seguinte. Apresentar trabalhos é a minha parte preferida da faculdade, aliás, sempre foi, da escola em geral. Gosto muito de falar para toda a gente, gosto de me expressar enquanto estou em pé, gosto que me coloquem questões e gosto de seguir um determinado plano e acabar tendo a certeza que aquilo que eu expliquei foi entendido. Normalmente, não apresento trabalhos para o professor ouvir, mas sim para a turma ouvir. Quando vejo professores a dar aulas, tento decorar gestos ou jeitos que eu acho que perturbam a nossa concentração para depois não os repetir numa apresentação. Tenho a mania, também, de quando são apresentações em grupo, ser eu a esquematizá-la, ser eu a distribuir os papéis que cada um tem e sublinhar a cores diferentes os assuntos que cada um vai ter que falar no seu próprio guião. Basicamente, gosto tanto de organizar como de expor. É verdade também que quando os exames são orais, tenho sempre melhores notas do que quando são escritos e no ano passado, uma oral valeu-me mais três pontos na nota final do que o professor inicialmente tinha pensado para mim - e ele fez questão de me dizer isto.  

Enquanto me preparava, esquematizei o que tinha que dizer, por tópicos, como de costume, e senti-me confiante. No entanto, durante a apresentação, os meus olhos fixaram-se na última fila, na cara do professor. Como disse, por norma nunca olho para ele, deixo os meus olhos cruzarem-se com o olhar dos colegas, sorrio a um e a outro enquanto estou a falar e recebo sorrisos de volta. Quando quero mesmo certificar-me que perceberam, deixo o olhar parado num deles e tenho para mim que se baixa os olhos, quer dizer que não percebeu bem e eu, aí, volto a explicar de outra forma, como quem não quer a coisa. Como normalmente baixo o olhar quando não entendo, esta é a minha técnica. Mas nesse dia, olhei para o professor e ele não me devolveu o olhar. Achei estranho, mas continuei a apresentação. Era claro que dominava o assunto do qual eu estava a falar, mas por algum motivo, não me prestava atenção. No final, fez-me duas ou três perguntas quase como quem tem a obrigação de perguntar alguma coisa para não ficar mal visto, eu respondi e voltei para o meu lugar, um bocado intrigada. Como é possível, após uma hora a falar sobre isto e aquilo, os meus colegas participarem mais do que ele?

Comecei a arrumar as coisas e nessa altura, a maioria dos colegas já tinha saído da sala de aula. Ele atendeu uma chamada e agradeceu os pêsames a alguém, pela morte da sua mãe. Desligou a chamada e saiu.
Parecia que me tinha caído o queixo. Como é que uma pessoa se torna tão forte ao ponto de conseguir vir dar uma aula depois da própria mãe ter morrido? Mas pensei em seguida: este professor hoje foi aluno, hoje esteve no lugar em que eu estou quando alguma coisa corre mal na minha vida e só tenho que lhe dar valor. Afinal ele não faz papel de palhaço, ele gosta de ensinar. Ele gosta tanto da sua profissão como eu gosto de apresentar trabalhos. Ou talvez mais, porque eu não apresento todos os dias. Ele gosta de nós e hoje só precisava de um descanso. Quero acreditar que não foi por acaso que a minha apresentação tinha calhado naquele dia, embora já estivesse programada há quase um mês. Quero acreditar - e sei que não é uma posição baseada na realidade, nem sequer é minimamente filosófica ou fundamentada - que aquele dia era o dia dele olhar pela janela e estar distraído e absorvido pelos seus pensamentos. 

Sempre respeitei os professores, mas com pouco fundamento. Acho que só lhes admirava o conhecimento que tinham sobre determinado assunto, nada mais. A partir daquele dia, prometi-me a mim mesma que quando começar a sentir-me distante nas aulas por algum motivo que não o requeira, vou lutar contra a sensação. É mau quando alguém não nos presta atenção pelo trabalho que nos demorou tanto tempo a desenvolver. A partir daquele dia decidi que me ia pôr no lugar do professor e ia julgar-me através dos seus olhos. É demasiado egoísta estar a roubar-lhe uma aula na qual ele investiu, sem eu saber em que condições o fez. Porque enquanto eu estou perdida em pensamentos que podem perfeitamente esperar um bocadinho ou a matéria simplesmente não me interessa, ele joga os seus pensamentos para o lado e esforça-se.
Há males que vêm por bem.

(Só depois de escrever o título é que reparei que ele pode ter duas interpretações. Pode parecer que eu quero dizer que um professor chora pela razão de uma aluna ter caído em si, ou podemos conferir-lhe a interpretação que eu quero dar: esta é uma reflexão acerca do facto de um professor também chorar, escrita por uma aluna que caiu em si.)
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