quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O tempo

Era de madrugada e as janelas tinham as persianas corridas, como se ocultassem o dia que ainda não tinha nascido enquanto eu me queria crer da sua existência. Aos tropeções, desliguei o despertador do telemóvel, que ecoava pelo quarto e corri até à cozinha. Era a última madrugada em tua casa até daqui a uns seis, sete meses. Nas noites anteriores, veio-me constantemente à cabeça quantas vezes não terias estado naquele mesmo sítio, naquele mesmo sofá, a pensar quando iria eu dar valor a estar naquele mesmo sítio, naquele mesmo sofá. Quantas vezes não cruzaste a perna, acendeste o cigarro e, calmamente, fumaste inebriado de nicotina e amor por alguém que não eu e que não quem era suposto ser. 
Reclamei todos os dias do cheiro a tabaco que havia em casa. Não se pode, assim que se entra, fazer outra coisa que não cheirar a manga da camisola, como espécie de transição para o que há-de vir e não estamos preparados. Reentrar numa casa vazia há algum tempo traz um sabor diferente de reentrar numa casa vazia mas que ainda é um lar. É uma espécie de frio gelado, de objectos que, mesmo rombos, são cortantes quando se olha - cheira a morte sem ser putrefacta. 
Sempre que amanhecia, os medos nocturnos evadiam-se para dar lugar a luz. Fiat lux.

Durante todo este tempo que passou - passou? - pedi em voz alta, para o ar, para os santos, para os entes, para os anjos, para quem quer que sejam, que por favor não me aparecesses em sonhos. Tenho medo de te ver, custa-me adormecer a pensar que posso sonhar contigo. E que esse sonho se pode transformar num pesadelo, para depois acordar e não existir nada para além de vazio.

Creio que no fundo de tudo, eras uma pessoa triste, uma pessoa ressentida, só com desejos por cumprir. À medida que envelhecias, ias perdendo o gozo em arriscar e a determinada altura, deixaste de dar de ti. Só depois de morreres é que descobri que a tua vontade de viver, essa que eu agora tenho, desapareceu quando fizeste 50 e poucos anos. Que antes disso, todo tu eras vida - depois, passaste a ser cancro e a vangloriar-te de transportares esse teu amigo. São palavras cruas e tristes e lamechas, que não servirão de nada a ninguém a não ser a mim e a quem lê a frieza de sentimentos. 
Não faço ideia do teu objectivo na vida. Nunca mo quiseste contar, que eu descobrisse, disseste algumas vezes. Dizias-me que tinhas respostas mas eu deixei de acreditar porque nem uma me foi revelada. 

Tomei banho, nesta madrugada, dei uma volta à casa e pensei na sensação que terias tido quando te apercebeste que era o último dia no espaço que tu criaste e que habitaste, sem deixares ninguém - a não ser uma única pessoa, que está longe - entrar. Ocorreram-me as últimas palavras que me disseste 'filha, dói-me muito a cabeça' e as últimas que eu te disse 'estou sempre contigo, papá, e gosto muito de ti' - ou pelo menos, as últimas que eu sei que ouviste.
Ocorreu-me se algum dia, enquanto jovem, terias sentido que cresceste em quatro meses, como eu sinto que cresci. Ou se sentiste que a tua morte foi um impulso para qualquer outro lado.
O que interessou nesta manhã foi que me apercebi, mais uma vez, que o tempo passa e que nada muda. É o mais complicado de aceitar, que por mais únicas - para o bem e para o mal - que as pessoas sejam, tudo continua, tudo se mantém como era antes. Os bebés continuam a nascer, as crianças tornam-se adultas e tu não tiveste influência absolutamente nenhuma. E eu sei que isto é racional, toda a gente sabe que o mundo continua e que o tempo passa, mas sinto que agora tenho a verdadeira percepção da passagem.

Se te transformaste nalguma coisa, transformaste-te em conceito. Tu agora és a ideia que eu tenho de Tempo. Criaste uma nova escala que nem eu própria sei explicar mas que me abriu a cabeça. O tempo é limitado, mas é infinito. Ao mesmo tempo.

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