domingo, 11 de março de 2012

Marcha Gay - tem sentido?

Não tenho dificuldades, em discussões com amigos ou conhecidos, em falar de marchas gay, paradas gay, manifestações homossexuais nem nada do género. Inclusive aqui neste blogue, há pouco mais de um ano, opinei contra as marchas gay, que elas não deviam existir e que não entendia bem o seu propósito para além de ser uma palhaçada com gente vestida às cores e a gritar 'eu sou gay, gostem de mim'. No entanto, o tempo passou e eu fui-me tornando mais consciente do que significa realmente sair-se para a rua e lutar por esta causa. Portanto, vou escrever a favor das paradas homossexuais, rebatendo os argumentos mais comuns contra estas mesmas e os meus próprios argumentos.

1. Se uma pessoa é gay, tudo bem para mim, mas não tem que vir gritar ao mundo a sua orientação sexual (OS). Eu sou heterossexual e não digo a minha OS a toda a gente.

Na verdade, este argumento é inválido. Quando o desconstruímos em premissas, ficaria qualquer coisa do género:
a) x é homossexual e apregoa a sua OS.
b) y é heterossexual e não apregoa a sua OS.
c) Apregoar a OS é errado.
.'. x erra ao apregoar a sua OS.

O que se passa aqui é que a expressão 'apregoar' está utilizada em sentidos diferentes em cada premissa. Ou seja, o termo é ambíguo e perante um termo ambíguo, o argumento é falacioso e a conclusão é impossível de ser retirada. E por que razão é o termo ambíguo? Bem, porque quando uma pessoa heterossexual apregoa a sua OS, não o diz tendo em vista a obtenção de mais direitos enquanto cidadão. Não há nenhuma diferença entre aqueles que são heterossexuais e aqueles que são cidadãos Portugueses. No entanto, há diferenças legais - e não só - entre aqueles que são homossexuais e aqueles que são cidadãos Portugueses, mesmo que o homossexual seja cidadão Português, o que é uma aparente contradição. Vejamos um exemplo: 

i) O Miguel nasceu em Portugal e vive com a sua mulher Laurinda, também Portuguesa. Ambos desejam adoptar uma criança, porque são estéreis, tendo todas as condições para o fazer. Depois de esperarem algum tempo, chega-lhes Margarida, a sua filha.
ii) A Filipa e a Sofia são casadas, Portuguesas, e desejam adoptar uma criança. Não o podem fazer porque, embora sejam exactamente iguais a Laurinda, não casaram com nenhum 'Miguel'.

Na mesma linha de pensamento está o seguinte:

iii) O João e o Pedro, ambos de cabelo azul, decidem ir comprar pastilhas elásticas à loja. A dona vende-lhes duas pastilhas de morango.
iv) O Manuel, de cabelo loiro, decide ir comprar pastilhas à loja. A dona não lhas vende porque ele tem o cabelo loiro.

Sei que o que se pensa quando se chega a esta parte do raciocínio é que não se pode comprar a adopção de crianças com a compra de pastilhas elásticas e que os exemplos não são congruentes. No entanto, o que se tenta demonstrar aqui é que, independentemente dos conteúdos dos exemplos, estamos a falar de uma questão de direitos de cidadãos. E se está previsto, em Portugal, que todos os cidadãos devem ter os mesmos direitos, então, não faz sentido discriminar (ou seja, tratar de forma diferente) uns e apoiar outros.

2. Não, os homossexuais não devem ter os mesmos direitos que os heterossexuais no que respeita à adopção, porque uma criança precisa de um modelo masculino e de um modelo feminino para se desenvolver correctamente. 

Como fizémos acima, vamos desconstruir este argumento em premissas:

a) Uma criança precisa de se desenvolver correctamente.
b) Para um desenvolvimento correcto, uma criança precisa de um pai e de uma mãe.
.'. Um casal homossexual faz com que uma criança não se desenvolva correctamente.

Este argumento não é válido, o que é facilmente verificável se observarmos o seguinte:

a.1) Uma criança precisa de se desenvolver correctamente.
a.2) Para um desenvolvimento correcto, uma criança precisa de um pai e de uma mãe.
a.3) A mãe do Francisco é solteira e não tem namorado.
.'. O Francisco não se desenvolveu correctamente.

Obviamente que isto é falacioso. O Francisco pode ou não ser boa pessoa (como sinónimo de uma criança que se desenvolve correctamente) independentemente de ter tido um pai e uma mãe, só uma mãe ou só um pai. Na verdade, o que se procura é que a criança seja bem educada, quer seja por um pai e uma mãe, por dois pais, por duas mães, por uma mãe solteira ou por um pai solteiro. Na mesma linha de pensamento, está o seguinte:

a.1.1) Uma criança precisa de se desenvolver correctamente
a.1.2) Para um desenvolvimento correcto, uma criança precisa de um pai e de uma mãe.
a.1.3) O pai da Micaela bate na mãe da Micaela todos os dias.
.'. A Micaela desenvolveu-se correctamente.

Não se pode também aferir a partir daqui que Micaela é ou não boa pessoa. Pode, no entanto, dizer-se que ela foi influenciada pelo ambiente que tinha em casa. E se é normal que uma criança repita as acções dos seus pais, independentemente de serem do mesmo sexo ou não, então isso iria determinar o seu carácter.

3. A adopção não devia ser permitida por gay porque os seus filhos serão gay.

Ou seja:

1) Ser gay é um mal.
2) Nenhum pai quer passar algum mal ao filho.
3) É condição necessária de ser gay ter-se filhos gay.
.'. Nenhum pai gay quererá ter filhos gay porque eles sofrerão desse mal.

Bom, aqui há uma série de coisas erradas. Em primeiro lugar, e sem qualquer espaço para discussão, ser-se gay não é um mal. E muito depressa se conclui que nem todos os gay são filhos de gay e que a maioria deles são filhos de heterossexuais. Não sofrem de um mal, sofrem de um problema, como já mencionado acima, que é o da igualdade de direitos enquanto cidadãos. E enquanto cidadãos, têm preferências, quer de cor de olhos, de cabelo, de sexo, de altura... Também se sabe que ser-se gay não é 'transmissível', da mesma forma que se eu usar muito a cor amarela que a minha amiga detesta, ela não vai passar a usar a cor amarela também.

Para mim, estes são os três argumentos centrais de por que razão os homossexuais se queixam. Todos eles centrados nos seus direitos e na igualdade entre pessoas. Também há o argumento religioso de que ser-se gay é pecado/anti-natura. No entanto, este mesmo não tem sentido e explica-se rapidamente, contra-argumentando. Nascer é o pecado original e mesmo assim continuam a nascer pessoas. Sábado/Domingo é o dia de descanso e mesmo assim há pessoas que trabalham num destes dias ou nos dois. E como estes exemplos, muitos mais. Se se pega na Bíblia para nos guiarmos numas coisas, então é condição necessária que nos guiemos por ela toda, já que é isso que faz de um Cristão um crente na sua totalidade. E eu e o leitor sabemos que isto não acontece, dado que nós mesmos vivemos num Estado Laico, ou seja, que não se guia pelos ensinamentos Bíblicos, ou outros de outra qualquer religião, para tomar as suas decisões enquanto Estado.

Quanto às marchas gay propriamente ditas:

4. As marchas gay são uma palhaçada (sem credibilidade) porque os gay só querem dar nas vistas e para isso, usam roupas sem sentido.

Significa isto que:

a) Querer dar nas vistas é um mal.
b) Usar roupas 'sem sentido' (ou seja, coloridas) é um mal
c) Uma pessoa ter um mal torna-a não credível
.'. Querer dar nas vistas e usar roupas coloridas faz da marcha gay uma palhaçada (sem credibilidade).

O seu contra argumento fala por si mesmo:

a.1) Querer dar nas vistas é um mal
b.1) Usar roupas 'sem sentido' é um mal
c.1) Uma pessoa ter um mal torna-a não credível
.'. A minha professora, que usa um cachecol azul, um gorro verde e fala muito alto, não é credível.

Lá por a minha professora usar roupas que não combinam e ter um tom de voz altíssimo não significa que os alunos que estejam a ouvi-la não acreditem no que ela diga e no exame final, escrevam tudo ao contrário do que ela ensinou nas aulas. Do mesmo modo, numa marcha gay, mesmo que hajam gritos e  pessoas vestidas de forma chamativa, isso não significa que elas não tenham credibilidade e que não estejam a dizer coisas com sentido.
Há também outra parte do argumento que eu não incluí nas premissas por poder fazer confusão. As marchas gay não têm só presentes pessoas homossexuais. Têm também heterossexuais porque estes reconhecem e concordam com as reivindicações daqueles, tal como numa manifestação por outra qualquer causa.

Concluindo e pegando na questão que suscitou esta pequena reflexão: as marchas gay não são uma palhaçada de gente a dançar e a cantar, vestidas de uma forma chamativa. São uma manifestação pela igualdade de direitos entre cidadãos com gostos diferentes. Não creio que se exija um tratamento superior para os gay em relação aos heterossexuais. 
Exige-se, sim, plenitude de direitos e total usufruto deles.


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