sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Histórias de escola #1

Até à quarta classe andei num colégio católico. Quando passei para a segunda classe, entrei numa turma nova, noutro colégio que tenho a sensação que era geminado com aquele o qual tinha andado durante a pré e o primeiro ano. Era uma turma relativamente grande, numa sala que cheirava a cola e a papel e na qual a professora fazia questão de mudar a disposição das mesas e das cadeiras a cada mês. A minha preferida era a posição de U, porque podia ver os sapatos dos outros meninos, já que todos usávamos bibes em xadrez vermelho e cinzento, portanto o que nos diferenciavam eram os sapatos. Tinha uma colega, a Joana, que trazia sempre uns ténis azuis com uma pequena cunha branca de borracha, que eu invejava e dava tudo para ter. Lembro-me de perguntar à minha mãe por que raio não tinha uns daqueles e ela, que nunca ligou muito a essas coisas, dizer que não eram coisas de meninas. Provavelmente se hoje os vir, vou achá-los pavorosos, mas quero guardar a memória de que eram lindos e eu queria ter uns iguais. Também foi a Joana a primeira menina que eu vi com um telemóvel. Era um Alcatel, cinzento e azul. Como não podia deixar de ser, eu também invejava, também queria ter um. Mais tarde, na terceira classe, o meu pai ofereceu-me um Ericsson preto, enorme, que se podia mudar as capas do teclado, de amarelo para azul e cujas teclas davam luz verde. Nesta altura, na escola, eu era uma menina caladinha, bastante observadora e com mais brincadeiras mentais do que físicas. Como não tinha irmãos, estava habituada a brincar sozinha e por isso construía diálogos mentais, mesmo durante as aulas. Foi sempre isso que me impediu de aprender a tabuada salteada. Sabia-a de seguida, mas quando me perguntavam 6x8 sem me terem perguntado 6x7 antes, imaginava sempre meninos com forma de números a saltarem de um lado para o outro e depois sabe-se lá que mais histórias inventava. Infelizmente até hoje não a sei salteada e imediatamente, tenho sempre que pensar um bocadinho. Foi um penar a terceira e a quarta classe por causa disso.

Depois deste enquadramento, quero falar-vos de uma colega que me fez a vida negra. Vou chamar-lhe Beatriz, mas esse não é o seu nome real. 
Eu nasci no Algarve e sempre tive a mania, até aos 13, 14 anos, que era 'do continente'. Vai daí, assim que entrei na sala no primeiro dia de aulas, a professora identificou-se logo comigo, já que era de Vila Real de Santo António. A Beatriz, até aí, tinha sido sempre a menina da professora e aos meus olhos, continuou a ser, embora mais tarde eu tivesse percebido que não era nada assim e que a professora gostava tanto de mim como dela, como de todos os outros colegas, aliás. Mas naquela altura, eu estava mais preocupada em parecer bem perante a turma e a professora do que propriamente competir com alguém que já lá estava antes. Infelizmente, a Beatriz não percebeu isto e declarou-me guerra antes ainda de eu saber o seu nome - literalmente.

O resultado? Como achava que tinha que convidar toda a gente para o meu aniversário, convidava-a também a ela. Lá aparecia, sempre com a sua cara mal-humorada, sempre com braços cruzados e os olhos escuros e brilhantes, tristes e com raiva, que eu sempre temia. Tirava-me o protagonismo de mim mesma, sentia que eu não era eu quando estava próxima dela. Era um medo enorme que se impunha e que não se afastava até ela se ir embora. A mãe dela trabalhava com a minha e até era simpática. O pai era simpático, o irmão era simpático, toda a gente da família era simpática e eu perguntava-me por que raio me tinha calhado aquela pessoa na turma. 

Houve um dia em que a professora fez um ditado. Eu sempre fui boa a português e os ditados eram as minhas partes preferidas, porque podia mostrar-me a mim mesma que conseguia escrever um texto só de ouvido. Creio que ditados são como música: soam-nos de uma determinada forma e nós tentamos reproduzir essa forma noutro suporte, neste caso, a escrita, no caso da música, num instrumento. É uma conversão de linguagem que sempre achei extraordinária. Já as cópias irritavam-me, porque era pôr num lado o que já se tinha dito no outro e ainda por cima... copiando! Por que eu não gostava delas, fazia das cópias uma espécie de ditados mentais e por isso elas saíam sempre com erros, que nunca ninguém percebia, só eu. 

Mas nesse dia em que a professora fez o ditado, eu fui a única da turma a ter todas as palavras certas. Tínhamos um jornal de turma e a Beatriz decidiu escrever lá assim: a Laura é uma manienta só porque teve tudo certo no ditado de hoje. Fiquei fula e chorei nesse dia. Não foi à frente dela, claro, mas a miúda tinha decidido arruinar a minha vida. No jogo da apanhada, quando ela jogava, tinha que ser sempre eu a apanhar, no das escondidas, quem contava era eu. As partes más ficavam sempre para mim e já me estava a fartar daquilo.
Para minha infelicidade, ela fazia equipa comigo no volei e jogava bem. Nunca soube ao certo por que gostávamos de estar na equipa uma da outra, mas a verdade é que lá ficávamos e nunca nos separámos. Fomos a Oeiras, a uns jogos de mini volei que lá havia. Numa das noites, eu dormi com ela e enchi-lhe a cara de sabão líquido. Pus também nas suas mãos, para ela pensar que se tinha esquecido de tirá-lo - santa ingenuidade. Quando ela acordou, como não éramos únicas pessoas no quarto, ela pensou que tinham sido outras raparigas. Arderam-lhe tanto os olhos que até me deu pena... até me lembrar das maldades que ela me tinha feito e continuou a fazer. Foi a minha única vingança para com a Beatriz.

O mais engraçado é que depois destes anos todos, dez anos depois, ainda me continuo a lembrar como se fosse ontem daqueles dias no colégio em que ela gozava comigo, arranjando mil e um pretextos e razões para eu ser inferior.
O que mais me dá pena é que sei que ela não é uma pessoa feliz. À medida que fui crescendo, continuei a ouvir histórias dela com outros amigos em comum e como eles a afastavam da sua vida por ela não saber ser amiga. Soube que teve um namorado - que eu conheço e o qual não vou muito à bola (e ficará de certeza para outro post) - que só a usava para ter boas notas. Como ela sempre foi boa aluna e ele era um bon vivant, a Beatriz era como que o seu porto de abrigo para poder aprender tudo de um dia para o outro. Ele deixava-a e voltava consoante os apetites - ou a necessidade de boas notas.

Nunca a vi sorrir sem ser maliciosamente. É verdade que posso estar a ser influenciada pelas histórias de infância, mas os olhos dela, a forma como o seu corpo se mexe... parece que está constantemente triste, parece que está num stresse profundo e que ninguém a pode ajudar porque é demasiado negra e orgulhosa para isso acontecer. Entristece-me também porque embora não esteja nada interessada em ser amiga dela, gostava de a ter como cliente para saber o que se passa e para a poder ajudar, embora de uma forma distante e profissional. 

À parte disso, tive (e tenho!) uma amiga, a Raquel M., que me ajudou a ultrapassar todas estas histórias nervosinhas e miúdas de infância. Na altura, ambas dizíamos que queríamos ser biólogas marinhas. Agora ela está em Psicologia e eu, em Filosofia, a querer seguir a área de Ética e Aconselhamento Filosófico. Ao que parece, os nossos interesses mudaram no mesmo sentido.

Já a Beatriz... estuda medicina.


Próximo post: Mimesis e Catarsis