quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Lucian Freud e a monadologia de Leibniz


Lucian Freud


Hoje, enquanto dava uma arrumação no quarto e punha os livros que estavam espalhados no seu lugar, dei de caras com um livro com pinturas de Freud que a minha mãe me emprestou. Tinha começado a folheá-lo, mas entretanto o trabalho acumulou-se e por cima desse livro, outros de outras áreas também se acumularam. Quando terminei de lavar a loiça, sentei-me na cama a ler e a observar as pinturas, com as devidas descrições da vida do autor e as suas inspirações. Dei-me conta que ele se inspira em si próprio, nas suas vivências, acabando por dizer mesmo que o seu trabalho é autobiográfico. Começa assim:
'Lucian Freud é um pintor do corpo em repouso. É, como ele próprio gosta de lembrar às pessoas, um biólogo. (...) O seu interesse está na revelação da verdade'. E é verdade. À medida que vamos passando por pinturas, não podemos deixar de reparar no cru. Mesmo algumas que parecem ser menos reais, têm este componente de verdade. Ora vejamos esta aqui abaixo:

O quarto do pintor

(lamento a qualidade da imagem, foi
tirada com a minha webcam)
É sabido que Freud gostava de tudo o que se relacionasse com equinos, então a determinada altura, ofereceram-lhe uma cabeça de zebra embalsamada. Ele achou tão fascinante, que pintou 'o seu quarto' com a devida cabeça. Nesta altura, o pintor era mais surrealista do que realista, sendo que de repente seguiu por esta última corrente, afirmando que não havia nada mais surrealista que um 'nariz entre os olhos'. O mais interessante nesta pintura, e tendo em conta que esta é uma pintura de transição de um surrealismo quase realista para um realismo que outrora fora surreal, é que, se se reparar, uma das pernas do sofá/cama tem uma rodinha a apontar para a esquerda e a outra, para a frente. Se desenharmos uma linha a partir de cada uma, para a frente e para trás, podemos verificar que são perpendiculares. Interpreto isto no sentido de que é necessário seguir por uma direcção, mesmo que essa não seja a direcção pela qual se vai seguir sempre. Ela vai levar-nos a outros estados mentais e a outras visões, acabando por se interceptar com elas e deixar a pessoa seguir o seu caminho. Por outro lado, podemos ver também que o chapéu negro e o cobertor vermelho, ambos caídos, são completamente antagónicos no que respeita à cor, mas por outro lado, têm os dois a mesma função, de agasalhar, e os dois estão caídos no chão. Mais uma vez, interpreto isto como as duas vias pelas quais passou o pintor, dadas as cores, não deixando de notar (porque os objectos estão caídos e têm a mesma função) que tudo está interligado e mais do que isso, todas as mudanças provêm da mesma pessoa.

A determinada altura da sua vida, Freud conhece Kitty Garman, que posou para muitas das suas pinturas. Casaram e tiveram uma filha, Anne, sendo que há uma pintura da mãe grávida. Mas aquela sobre a qual me quero debruçar é a da Rapariga com Gatinho. Mais uma vez, somos quase obrigados a desenhar linhas, um tanto quanto desconcertantes. Por um lado, Kitty olha para o lado, como que amedrontada, com os olhos vítreos, brilhantes. Sem dúvida que a verdade é completamente caracaterizada aqui. A verdade é crua e criada a partir dos olhos dela. Arrisco até a dizer que parece que nos ameaça com a sua presença, a sua figura é ríspida e nota-se uma consciência pesada. Não pode também deixar de lembrar Ingres, como é claro, dada a sua intensidade. Mas estes tipo de olhos, grandes e pesados, são também observáveis na Rapariga com Cão Branco que mostro em seguida.

Rapariga com Gatinho

Monsieur de Norvins - Ingres

Rapariga com Cão Branco

Percebe-se bem que o Rapariga com Cão Branco é um quadro que evidencia as concordâncias e disparidades entre os animais e os humanos. As rugas apresentadas pela pele e pela roupa, respectivamente, as orelhas do cão e as mangas da Rapariga, o focinho e o peito... Até mesmo parecenças entre o focinho do cão e a cara dela. Mas depois, não podemos deixar de ver que a intensidade do olhar de ambos é bastante diferente. A preocupação e a tensão na cara da mulher, a necessidade de nos fitar assim como nos fitava o gato, de forma a criar tensão entre o espectador e a pintura não nos passa ao lado. O ar de confortável abandono do cão é o único elemento que nos pode fazer descansar as sensações. O único problema é que não nos olha de frente, como se nós nunca pudéssemos atingir esse saudável conforto. 

Ampliação


Repare-se também na corda que a rapariga tem à cintura, entrançada e apertada, quase como que reflectindo o seu desespero interior e a intensidade com que nos olha. Mas depois, o robe cai pelo ombro, que eu vejo como sendo só um disfarce, da mesma forma que nos disfarçamos no dia-a-dia para ninguém  reparar que estamos preocupados com alguma coisa. O cão não tem cauda.

Tudo isto veio a propósito de uma outra teoria que nada tem a ver, aparentemente, com Freud. É a teoria da monadologia de Leibniz que mais não diz que uma mónada é uma substância simples, sem partes, indivisível, que constitui substâncias compostas, aquelas que podemos ver. No entanto, uma mónada não  é palpável, da mesma forma que um raio de sol ou a luz não o é. Mas, tanto um como o outro têm qualidades, de forma a que os possamos caracterizar, já que de outra forma não seriam sequer 'seres'. Com efeito, se estas substâncias simples não diferissem das outras pelas suas qualidades, não se poderia distinguir nenhuma mudança nas coisas. Portanto, se as mónadas fossem efectivamente privadas de qualidades, não se poderiam distinguir umas das outras e se não se pudessem distinguir, tudo o que existe  seria um constante pleno e nada do que viesse depois era diferente do que havia anteriormente. 

Mas se as mónadas mudam, tem que haver alguma coisa que as faça mudar e essa coisa, afirmada por Leibniz, é Deus. Então, cada vez que uma mudança acontece, acontece por 'graus', há um detalhe daquilo que muda, há uma especificação do que é mudado, um aspecto particular que determine a variedade de substâncias simples.
Não é necessário explicar muito mais sobre esta teoria para conseguir expressar a relação que faço entre Freud e Leibniz. Ambos se concentram em algo estático, algo que existe e ao qual são dadas formas, no caso de Leibniz, as mónadas elas mesmas, no caso de Freud, a verdade e os corpos humanos, crus, tal como são, para depois começar a surgir uma série de analogias entre a verdade e o que é estático, e a mudança. Essa mudança, recta como as linhas que sugeri em Freud, é impulsionada por uma tensão de forças, as quais estão representadas na ligação entre o observador e o quadro, ou meramente a força de Deus que impele a essa mudança e que faz com que todos os compostos o sejam pela individualidade - e individualização - dos seus constituintes. 
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