segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Em memória do meu pai

Chamavas-me de urgência e eu não ligava, julgo que de dor, a mesma que a tua, mas noutros sítios, e com mais tempo. Ela toma proporções tão grandes que nos fazem reagir de formas incompreensíveis. Só agora, enquanto o tempo vai passado, me apercebo que a morte muda tudo. 
Falávamos mas há muito tempo que não conversávamos. Não creio sequer que tivéssemos tido alguma vez uma conversa real, que não fosse uma misturada de palavras, uma necessidade de atenção por parte do outro, um grito de ajuda das duas partes que ambos nos recusámos a ouvir anos e anos a fio. As memórias, as minhas, não são de palavras. São de expressões faciais, de posições corporais e de cheiros. Que não me fazem impressão se os voltar a sentir noutra circunstância, porque as memórias estão paradas no tempo e não são reviver de nada, porque isso implicaria que o momento regressasse. E ele não regressa.

Inchou-te o corpo - os olhos - como protecção, não sei se da doença, se do mundo. Cegaste e, lentamente, foi-te sendo retirada a consciência. Não te toquei, com medo, com medos. As mensagens e os telefonemas caiam aos montes - eram cheios de pena, todos eles com palavras de suporte, como se o destino traçado se estivesse realmente a concretizar e toda a gente já o soubesse: menos eu. Ao mesmo tempo que ficavas inconsciente, eu acompanhava-te nesse teu caminho, como um adulto que tenta acompanhar as primeiras passadas desajeitadas de uma criança, tornando-se mais desajeitado que ela, quer da posição curva ancestral, quer da falta de hábito de não saber andar. Não estava consciente ao teu lado, porque se forçasse a lucidez, não estava contigo, mas comigo, exactamente da mesma forma que estive todos estes anos, qual D. Quixote certo daquilo em que acredita. 

Abriste os olhos. Eram vermelhos onde deviam ser brancos, pretos onde deviam ser cor de pele. Mais do que nunca, impressionei-me. Sempre que saía do quarto com cheiro moribundo a queijaria, a imagem acompanhava-me. Olhos esbugalhados de quem acaba de ser enforcado, de quem tem falta de ar mas tenta sobreviver, de quem está sentado ao colo da morte. Regressava e não te olhava. Evitava cruzar o meu olhar com o teu, tudo era violento, tudo me atacava por todos os lados. Se não me vias, eu não me torturava a olhar para ti. Fazia-te festinhas na mão e cada palavra que te dirigia não me fazia sentido, não me tinha importância. Nem a ti, porque não me ouvias e a inutilidade do tempo e das acções pulsava dentro de todos. Então, mantinha-me em silêncio, na esperança - essa, estúpida, de quem já não se pode valer do mundo real - que o que estava a pensar pudesse entrar na tua cabeça. Imaginava as tuas respostas e foi assim que passei outro dia, com medo que morresses enquanto estivéssemos de mãos dadas.

Entrei sozinha no quarto. Haviam tirado o oxigénio, parecias um peixe fora de água. Olhei-te menos do que um segundo e senti-me desfalecer. Caminhei em direcção à casa de banho e estava lívida: viam-se as olheiras, que não tinham maquilhagem há mais de duas semanas, e ocorreu-me que parecia uma versão gorda dos judeus em campos de concentração. A nossa memória prega-nos partidas terríveis e essa imagem de ti de milésimos de segundo vai ficar para sempre aprisionada em mim.
Tive a certeza que morrias - ou se calhar não tive, mas pensamos sempre que devemos ter pressentimentos quando coisas graves acontecem - e saí do hospital. Prometi-me que não mais lá voltaria se não morresses, porque a violência que o sofrimento provoca é imensa e transborda. Lembro-me do ar fresco misturado com a memória olfactiva de queijo, que ainda me acompanha, e do chão, que desenhava peixes de boca aberta.

E então, morreste. Todos eles choravam infantilmente, como se o vómito de água pudesse demonstrar sentimentos quando misturado com sal. Beijavam-me, lamentavam, mas o dia não foi penoso, porque já tudo tinha terminado.

Não tenho pena das coisas que ficaram por te dizer: não houve falta de oportunidade. Todas as decisões foram conscientes e adultas e todas elas voltariam a ser repetidas nas mesmas circunstâncias. O que me custa é que tudo continue. Que prossigam os risos, que prossigam os beijos, que prossiga a tristeza e a miséria sem que tu, do alto do teu pedestal, possas afugentar a realidade com as tuas memórias e que cries um happy place no mundo. 
Porque agora, tu és a memória - e alimentarás aquilo de que sempre foste alimentado: do passado. 

O que me custa é que tudo continue.
O que me custa é que tudo continue.
O que me custa é que custe.

Papá
1948-2012


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