terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Erotismo e beleza

Já há algum tempo que a minha sensibilidade artística foi despertada. Embora não saiba dar duas pinceladas que correspondam ao que quero efectivamente desenhar, comecei a apreciar obras de arte - desenhos, pinturas, esculturas e instalações. Venho a reparar realmente que a sensibilidade cresce com a idade e que não pode ser ignorada porque está lá e manifesta-se. Infelizmente não tenho formação nenhuma, tenho as minhas análises pessoais e por enquanto, é o que basta. Lembro-me que uma vez estava numa aula de estética e o professor passou um excerto do filme American Beauty - que aconselho vivamente *. Nada mais era que um saco de plástico a esvoaçar. O excerto está abaixo e vale a pena ver até ao fim.


Lembro-me que o professor esteve calado durante mais de um minuto e que, a partir daí, com o resto do excerto a ser projectado e enquanto escutávamos a música calma que impedia qualquer memória negativa, foi explicando, pedindo atenção a este movimento ou aquele, pedindo para que notássemos o contraste e, principalmente, que notássemos quão bela era esta cena. Eu, que já tinha visto o filme antes de o ver na aula, nem me lembrava desta parte. Vi-o em Setembro, creio, antes de começar o curso. E, de repente, fez-se luz na minha cabeça. Abstraí-me da sala e entrei nele, como se a continuação da minha sensação estivesse dependente daquele saco de plástico e do seu bailado. Realmente, o que pode haver de tão belo num saco de plástico que esvoaça ao som de uma música? Se nem repararam em nada, vejam outra vez o excerto; eu nunca me canso dele.
É preciso ter em atenção que todo o filme é construído à volta de americanos estereotipados em personagens, que se deixam desmascarar, em que cada fragmento pode ser isolado e analisado a sério. 

Mas todo este post veio a propósito de uma outra coisa. Do facto do carácter artístico nos dar prazer, que Platão acaba por transformar, em Fedro, em prazer mais ou menos erótico. Se é verdade que é o único diálogo em que Sócrates aparece no campo, longe da cidade, também é verdade que deita uns esgares ao jovem Fedro, ao que aquele se deixa atrair, seduzindo-o. Notemos que este desejo de saber é misturado com o desejo de ter, o desejo carnal, corporal. A relação do saber com o amor não é somente filológica - ou seja, no sentido em que a Filosofia é amor pela sabedoria - mas que também tem um elemento sexual claro. E em Platão, este elemento está explícito. Estou a lembrar-me agora que no Banquete - o diálogo por excelência sobre o amor - também podemos encontrar esta mistura. Aliás, estes dois diálogos fundamentam uma interessante relação com o êxtase místico, com o sair de si - tal como Sócrates sai pela primeira vez da cidade.

E Sócrates também sai fora de si em muitas ocasiões e a verdade é falada pela sua boca. Este êxtase, então, é erótico porque a contemplação da beleza de Fedro o inspira. Assim, é referido pelo seu oponente que o amor é danoso. Em efeito, é uma espécie de loucura. Mas é logo interrompido porque a loucura não é, no geral, um mal - e isto vai interessar-nos porque este conceito de mania está vinculado à criação poética e à inspiração. Parece que aos génios se permitem coisas que não se permitem ao resto dos mortais. Aliás, para se compreender melhor por que razão os deuses falam pela boca dos génios, clique-se em Pítia**. Assim, se a poesia é inspiração divina, então não pode ser aprendida. Nas palavras de Platão, não é uma techne, uma técnica, mas sim uma loucura dos deuses. É, então, um dom. E o mesmo se passa com o amor. Ninguém aprende a amar: ama, simplesmente. Quem diz amor, diz erotismo - aquele que possui técnica será, portanto, um amante medíocre. 

A beleza é uma ideia, mas é uma ideia acompanhada com uma manifestação sensível dela mesma. A diferença entre as outras ideias, como por exemplo, a valentia, a piedade, a justiça... - é que elas não podem ser manifestadas através do mais básico: os sentidos. Passam directamente do ideal para a concretização em acção, sem sequer tocar naquilo que nos é mais instintivo. É por isso que nos é permitida a ascensão à contemplação do inteligível. 
Por isso é que é possível estabelecer uma relação entre o amor e a beleza, no sentido em que o desejo, que une estes dois conceitos, se ramifica, para obter resultados distintos, mas com a mesma base.

*O link para o filme online, com legendas, é este (infelizmente não consigo fazer uma hiperligação):
http://filmesbr-download.blogspot.com/2009/03/american-beauty-download-legendado.html

**Pítia: http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%ADtia
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