sábado, 17 de março de 2012

Carta ao Pai

A livraria que mais gosto em Lisboa é a Almedina, no Saldanha. Às vezes vinha da cidade universitária e fazia o (enorme) desvio só para lá entrar, sentar-me um bocadinho e ir-me embora. Foi lá que ganhei o hábito de ler livros não comprados. Se antes achava que era um disparate, passei a perceber que as mesas que lá estavam eram exactamente para isso. 
Houve um dia em que decidi faltar às aulas. Faltar às aulas o dia todo. Saí de casa de manhã e tomei o metro em direcção ao Saldanha, em vez de tomar o autocarro que me levaria à faculdade. Decidi que aquele dia ia mudar a minha vida. Entrei na livraria e não estava ninguém, a não ser os empregados. Fui à secção de clássicos e apanhei o primeiro que lá estava: Carta ao Pai, de Kafka. Era um livrito pequeno, lembro-me de ter pensado que se queria mudar a minha vida, tinha que começar devagar, por pequenos passos. Sentei-me numa mesa negra, de duas pessoas. Pousei a mochila e li. Li durante duas horas, sem tirar os olhos do livro. Fiz duas pausas, já quase no final, porque tive a certeza de que ia chorar. Mas não chorei. No final, olhei para o relógio: 10.30h da manhã. Dez e meia e eu já tinha lido um livro. Podia ler outro. Podia ler todos os livros da livraria. Mas não, aquele tinha sido demasiado especial e nem sequer seria capaz de escrever um comentário ao dito, de tão perfeito que estava. A sensação é quase a mesma do que quando ouvimos uma música que nos diz exactamente o que nós queríamos dizer e não conseguíamos. Depois somos abalados por aquela espiral na garganta, por uma força que nos comprime o estômago e ficamos hirtos. O que está à nossa volta ganha outras cores.

Saí da livraria, mas trouxe A Metamorfose comigo, como se ela mesma fosse sinónimo do que sentia.

Estava na faculdade, a primeira aula ainda não tinha começado, creio que o professor faltou. Fiquei sozinha. Todos eles se deixavam levar por conversas intelectualizadas, por matéria das aulas, por misturas de ideias e vontade de agir: eu só queria que lessem a Carta ao Pai. 

Até hoje não tenho o livro.
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