quarta-feira, 2 de maio de 2012

Sobre o Pingo Doce (e Kant metido ao barulho)

Ultimamente não tenho ido ao Facebook por estar a estudar, mas não dispenso as minhas visitas diárias pelos blogues. Ontem fiquei estupefacta por ver que cada blogue ao qual eu costumo ir falava sobre o Pingo Doce! O Pingo Doce, para quem não conhece, é uma cadeia de supermercados em Portugal que decidiu, no dia 1 de Maio, fazer uma campanha na qual atribuíam um desconto de 50% a quem fizesse compras a parir de 100 euros. 
Pretendo analizar a intenção da acção e a acção em si.

A intenção
É verdade que penso que a maior parte das acções se julga pela sua intenção e esta não foge à minha kantiana regra. Com toda a certeza a intenção do grupo Jerónimo Martins (JM) foi ganhar mais dinheiro do que o costume, pôr a andar produtos junto ao final de prazo e fazer com que as pessoas gastassem o que em situações normais não gastariam. Ouviu-se falar de pessoas que fizeram 400 e 500 euros em compras, pagando por estes, 200 e 250 euros, respectivamente. Acho que, para uma companhia cujo slogan é qualquer coisa como 'sem cartões, sem talões, sem (qualquer coisa acabada em -ões, com o mesmo sentido)', está errado abrir um dia de promoçÕES ainda por cima passando pela fase política, económica e social por que passamos.
Porque se é um facto de que há gente que não tem que comer, também é verdade que é um facto que foi um boicote de todo o tamanho à noção de greve, o que fez com que os esfomeados abdicassem da sua dignidade e fossem, quer trabalhar, quer ao supermercado, nestas circunstâncias. 
Já é conhecido o dito de que com migalhas se alimenta o povo, ou aquele em que diz que não custa obedecer quando se quer mandar e foi exactamente isto que se passou. Usou-se sem qualquer noção de dignidade, intencionalmente, as pessoas. E como elas não devem ser meios somente para obtermos aquilo que desejamos, senão fins em si mesmas, então esta acção é condenável da parte do grupo JM.

A acção
Li por aí que há quem defenda que foi uma boa ideia porque se aproveitou um feriado e assim ninguém estava a trabalhar. Esta posição está errada por imensos motivos. Em primeiro lugar, os empregados do Pingo Doce estavam a trabalhar e provavelmente a ganhar mais do que em dias de trabalho normais e depois, porque o feriado que se celebrava não era um qualquer feriado 'recente' nem sem conotações politico-sociais. Era o feriado do Trabalhador, o feriado onde não se trabalha por se celebrar o dia do Trabalhador. Era o feriado onde se celebrava uma conquista de liberdade que foi completamente aniquilada por esta acção Pingo Doce. E depois, porque mesmo que se tivesse realizado a acção noutro dia qualquer, as pessoas teriam ido na mesma ao supermercado. 
Creio que esta análise está bem pequena e explícita:

Por muita repugnância que nos causem os descontrolos consumistas (a mim, causam), é preciso manter a calma suficiente para perceber que o essencial não é necessariamente o mais visível. A reflexão do Sérgio Lavos sobre a bomba do Pingo Doce ajuda a perceber que pode não ser produtivo limitarmo-nos a apontar o dedo aos demais. Falta-lhe, a meu ver, uma menção explícita ao carácter simbólico da escolha do primeiro de Maio para festa do consumo. É que tentar riscar datas do calendário, para lá colocar brindes de supermercado que fazem os compradores correr e arfar, vale mais, para certos "empresários", do que qualquer objectivo comercial. Sim, porque quem tem muito dinheiro gosta, frequentemente, de o gastar em ideias - em geral, nas suas ideias acerca do valor intrínseco do seu dinheiro.
O Pingo Doce não é um caso de polícia, é um caso de sociedade.


O que se passa é que parece que ninguém percebeu que foi para casa com montes de produtos os quais não são necessários. Não me vou armar em santa e dizer que não compro produtos desnecessários. Neste mesmo momento estou a ouvir música com uns phones enquanto na minha secretária pousa outro par que, como é óbvio, não uso ao mesmo tempo que estes que estou a usar agora. Mas o problema é ninguém quis saber dos direitos de ninguém, ninguém quis saber onde é que vai parar o dinheiro que o PD ganhou com esta acção. Muito reclamam nas manifs (das quais eu também participo) acerca dos direitos dos trabalhadores, acerca do dinheiro que ganham as grandes empresas... mas depois, não consigo compreender onde é que estão os valores que tanto defendem!
Abaixo segue um excerto:


Mas tenhamos uma coisa em mente: nas alegorias políticas em forma de filme de zombies de George Romero, 
os mortos-vivos acabam quase sempre por ganhar 
consciência e tomar conta de tudo. 
Os neoliberais contentinhos com o êxito passageiro de 
Soares dos Santos poderão ser os humanos do futuro, carne para os zombies de agora. Nada dura para sempre.


Quanto a mim e à minha tomada de decisão: há pouco tempo, antes de vir para Espanha, tinha ficado fã do Pingo Doce porque os preços eram realmente mais baixos em comparação aos preços praticados pelo Continente. Mas hei-de arranjar outro supermercado, minimercado, o que seja. Porque não creio que lá volte a pôr os pés, tal é a falta de dignidade que teve. Pessoalmente senti-me melindrada pelas intenções que julgo terem estado por trás da acção. 
Como disse: com migalhas se alimenta o povo.
Mas isto sou eu.


'Com papas e bolos se enganam os tolos'



(O texto, a partir das citações, ficou formatado de uma forma estranha, mas realmente não sei como formatá-lo de forma a que fique todo por igual. Peço desculpa.)
Próximo post: Mimesis e Catarsis